Passou a noite em claro. Já não mais sentia a temperatura da pele que ora era estável, mas a maior parte do tempo estava fria. O medo lhe inflamara a alma. Sabe que resta pouco tempo, mas bem pouco, que compense o peso de toda sua vida. Medo de ser pouco o amor velado que a dor estampada ofusca o seu brilho. Medo do dragão que agrega junto às suas mazelas, os seus rancores. Medo de se aprisionar à fera que pela janela é escura e infame.
Um copo d'água encobre a mágoa que Ela traz no peito. De um lado a outro dos cômodos insalubres como sua alma, só se vê aflição estampada na mobília. Ao telefone desesperada, tentativas sofridas e eis que então, sussurrando, quase suplicando disse bem baixinho:
Ouça-me!
E de repente com destreza, com voz clara e frieza, sem pudores, Ela diz:
Eis que vim reivindicar, minha lida
com tristeza em minha voz, reivindico:
Tive tempo e esperei
Meus momentos empurrei
Via abaixo goela adentro.
Como assim, em que errei?
Se assumo é porque tento
Como as palhas eu queimei
Tantos mares naveguei
Vem você com sentimento?
Eu não minto,
Já tentaram e eu não abro mão do meu pressentimento.
Pouco a pouco entretanto
Vem o mundo com espanto
Ofuscar a minha voz
Vem você com calmaria
Com cuidados, ironias
se juntar ao meu algoz
Não às mágoas, eu parei
As intrigas encerrei
Não há mais ressentimento
Hoje eu quero é despertar
Não vou mais incomodar
Nos veremos noutro tempo
Eu não minto,
Já tentaram e eu não abro mão do meu pressentimento.
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Um silêncio eterno invade aquele breve momento ao telefone. Primeiro um leve soluço do outro lado da linha. Ela se mantém firme em seu propósito. Não baixa a guarda. Um leve pranto rompe o frio da narrativa. Ela então, deixa o telefone sem mais respostas, vai até o sofá. Deita-se. Um vazio invade o ambiente sombrio a somar-se às lágrimas. Um leve sono atormenta seu corpo. Dorme. Ali mesmo.
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