7 de set. de 2020

Parto

 Quantas certezas eram falíveis. Vi alguns mortos correndo pelo quintal da minha casa. Brincos, sapatos, pulseiras. Pés, mãos e joelhos preservados. Ainda não sabia o que era amar. Sofrimentos, já me eram familiares.

Meus pais em pé na porta da sala. Ninguém entrava ou saía. Só os mortos.

Fui abusado na infância pela minha psicóloga.

Morri no mesmo dia em que descobri que eu não era mais nem menos que um menino pobre. É que a morte só existe na cabeça dos vivos. E você, já está morto? 

Eu já. 

Não se preocupe, não é meu papel brincar com a tua fé nem com as tuas manias.

Entre ressentimentos e sentimentos, sentei-me no sofá da sala. TV ligada, chão empoeirado, mesa de centro no canto esquerdo próximo à porta. Um toque de telefone rompe a trama do desenho animado como os estalos no inferno quando Jesus por lá esteve. Só de passagem. Era ela, a psicóloga que outrora estuprara minha mente.

Morro a morte e não quero essa tal vida curta. É tão bom aqui! Meu lugar antes do parto. Aqui o sol não nasce nem se põe. Águas em abundância saciam qualquer sede. É tão bom aqui! Se sentir incapaz! Nada, nada posso ou preciso fazer para ser feliz. Basta-me não pensar. Nem perco ou ganho tempo. Na morte, ele não existe. Subsiste.

 

Ela me disse que eu seria feliz, não me cobrou nada. Disse também que a angústia traz a paz. Concordei. Chorei a vida de meus pais. Não preciso aprender coisas de gente grande (risos)!

E você: já morreu?

Eu já.

Pontualmente reticente, eu sou todo o espaço, todo o azar e sorte. Tudo está em minhas mãos.

E eles... se foram como um parto. Eu ainda estou aqui matando, feliz, o meu eterno dia. Ela, ela brinca com meus sentimentos. anestesia minhas vontades. inebria-me.

 

Sinto muito por você que ainda vive. Sinto muito por todos. É tão bom aqui! Às vezes fico imaginando o que é viver e, tão logo, me dá uma preguiça disso tudo-nada aí... porque tudo é tão pouco, tão curto, tão vago. Jesus só foi aí de passagem. Aqui ele e eu nos encontramos.

 

“a morte só existe na cabeça dos vivos”

 

Moringa

(Marcio Lima)

 

é resgate ou sequestro

coração não sabe ao certo

se fica ou se aventura

é cerrado, é deserto

um distante, outro perto

nosso amor é nossa cura

 

um,

somos dois e somos um

sem mais porquês

somos dois e somos um

iguais o quê?

 

a aridez em teus lábios, menina

maltrata e fascina

essa chuva que mal chega, respinga

tua lágrima na minha

 

um,

somos dois e somos um

sem mais porquês

somos dois e somos um

iguais o quê?

 

é o cansaço do oleiro que finda

na curva da moringa

é saudade que se acaba, termina

vai a noite, vem o dia

 

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